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Você escreve para si mesmo. Mas por que não?

Estou eu, há mais de duas semanas, matutando sobre a afirmação “Você escreve para si mesmo”, do professor William Zinsser, no livro Como escrever bem, publicado pela editora Fósforo (2021), e me vejo em meio às cinzas por não conseguir colocar as ideias na tela – nem mesmo o saudoso papel tem me ajudado a organizar meus tímidos pensamentos. Mas agora uma faísca de alegria lucila nesse coração já desmantelado por meu próprio ego, afinal, essa minha dificuldade deve se dar pela tonelada de opiniões antagônicas que tanta reflexão fez cair sobre mim… Se bem que, pelo visto, parece que o professor já previa essa reação, pois ele mesmo diz que tal questão pode parecer um paradoxo à primeira vista. Vá fa Napoli! A faísca acaba de ser reduzida a um mero borralho.
Um tempo depois, uma chama aconchega meu coração quando me dou conta de que toda essa reflexão se tornara, nada mais nada menos, que uma análise muito crítica sobre o significado das palavras do professor. Saio da minha zona de conforto e vejo o quanto sua simples afirmação abala tudo o que venho aprendendo desde menina. Sou catapultada para fora da minha comedida caixinha de pensamentos. Não é à toa que estou sem palavras.
Para quem você escreve?
Veja bem, até hoje, meus antigos professores, os manuais, os posts do LinkedIn dizem: “Você tem que saber para quem escreve, quem é o seu público e o que ele espera do seu texto”. Ora bolas! É melhor ver o que o grande oráculo virtual tem a dizer antes de continuar viajando na minha ideia. Encontro coisas do tipo: “Pode ir tirando seu cavalinho da chuva se acha que pode viver de sol, só contemplando a existência. Escrever pra si mesmo é coisa de narcisista. Hoje, para nós mesmos, mal escrevemos uma listinha de mercado para nos lembrar do que está faltando em casa, minha filha. Você só escreve porque quer confete!”.
Pois não é que esses mordazes argumentos são imbatíveis? Engana-se quem acredita que a escrita é uma atividade solitária.

“O texto é o telefone sem fio do escritor, é através do registro das palavras no papel que ele ganha voz, e sua chamada só será completada se houver alguém do outro lado da linha o ouvindo.”

Essa é a verdade incontestável.
O bom escritor tem muito a dizer, e o bom leitor quer ouvir.
Mas o fato é que a linguagem não é branco no preto nem preto no branco. Cada pessoa interpreta uma mensagem como bem entende, de acordo com seus valores e sua história de vida (Ainda bem!). Assim, fica a questão: como definir um público, um conjunto de pessoas que julgará um texto usando os mesmos critérios? Nesta era em que a prioridade é expandir cada vez mais o alcance de vendas, encontrar seus leitores ideais é como procurar uma agulha no palheiro. Mas em meu coração, das cinzas renascem as labaredas, e começo agora a apostar que o professor Zinsser vence esse duelo de titãs, pois, já que a linguagem é aberta a interpretações, as palavras do professor também são.
Analiso. Visualizo minha fênix. Filosofo sobre o tema. Escrever pensando em determinado público é como escrever para todo mundo e para ninguém. Quando o autor redige um texto tentando agradar o leitor, acaba seguindo a convenção mercadológica imposta pela necessidade de atrair e reter. Acreditando, no auge de sua prepotência, que conhece a capacidade de julgamento de seu público, ele molda seu texto para atraí-lo. Engessa seu texto – suas ideias – visando um mercado que muda da noite para o dia sem sequer dormir (Dale modismo!). O resultado acaba sendo um texto truncado, empolado, que revela a falta de identidade do escritor, e no fim das contas, em vez de reter o leitor, esse participante tão ativo da escrita é expelido. Quem está do outro lado da linha não se conecta; o telefone sem fio não funciona; a comunicação, o propósito de tudo isso, falha.
Por que o esforço por agradar o leitor pode ter efeito contrário?
Agora, quando o escritor confia no seu conteúdo, sabe o que quer transmitir e como quer transmitir, o negócio muda de figura. Ele já não é mais refém das amarras das convenções, se desprende dos velhos manuais e voa para ganhar sua própria voz, alçar sua própria identidade, defender sua opinião e seu estilo. Com essa atitude, ele se coloca humildemente na posição de leitor, vê seus textos com os olhos dele, e assim escreve de modo que lhe agrada. Agradar seu verdadeiro público acaba sendo uma mera e feliz consequência.
Ora, se a linguagem é multicor, se cada pessoa é tão diferente uma da outra, se para cada um pode haver um critério distinto de avaliação, tentar agradar a gregos e troianos é dar murro em ponta de faca. O bom escritor é o seu mais crítico leitor. Escrever para si mesmo é querer estar e se colocar na pele do leitor, sem julgar seus valores, e assim deixá-lo cumprir seu papel no ofício da escrita.

Marcela Rossine

Começou a estudar tradução em 2018 e passou dois anos se estruturando para fazer uma transição de carreira. No final de 2020, aos 35 anos, traduziu o primeiro livro oficialmente, Conto de fadas europeu, do folclorista e historiador Joseph Jacobs; e logo na sequência, surgiu mais um desafio: traduzir O papel de parede amarelo e outros contos, da escritora e pensadora feminista Charlotte Perkins Gilman. A partir de então, não parou mais de traduzir. É apoiadora da AME e participante assídua do clube de leitura da escola.

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