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Quem guarda as nossas memórias?

No livro Como escrever bem,William Zinsser (p. 244, editora Fósforo, 2021) afirma: “Escritores são os guardiães da memória”. No clube de leitura da escola, nos foi proposta a seguinte reflexão:

Se nós, tradutores e revisores, trabalhamos com a escrita, podemos dizer que também somos guardiães da memória?

O autor se refere especificamente ao escritor de memórias de família, ao escritor que toma “registros de sua vida ou da família em que […] nasceu” (p. 244). Tradutores e revisores, porém, trabalham com textos muito variados, não somente com histórias de família e memórias. Para responder à pergunta, analisaremos, antes de mais nada, se a afirmação de Zinsser vale para qualquer escritor, independente do gênero que escreve.
Para tanto, começamos definindo o que o termo “guardião da memória” significa exatamente e como ele pode ser aplicado ao escritor. Segundo o dicionário online Michaelis, um guardião é uma “pessoa que protege e defende algo ou alguém.” Já sobre a memória, o mesmo dicionário diz que é “o produto de experiências passadas que permanece no espírito e serve de lembrança.” Um guardião da memória, portanto, é alguém que protege experiências passadas do esquecimento. E é exatamente o que escritores fazem: ao colocar suas experiências (ou as de outras pessoas) no papel, eles as materializam, e assim as tornam mais difíceis de serem esquecidas, de desaparecerem para sempre. Pois mesmo se ninguém se lembra delas, elas ainda existem numa forma física que pode ser consultada a qualquer momento.
Mas não queremos nos restringir a memórias familiares, então quais memórias os escritores tentariam proteger?
Cada escritor é um produto da época, país e cultura em que vive e isso inevitavelmente se reflete em maior ou menor grau em sua obra. Seus escritos, portanto, são um testemunho de justamente essas três variáveis e permitem ao leitor conhecer melhor a sociedade, os costumes, os valores, a visão de mundo, e fatos históricos daquele tempo. O escritor registra então uma parte da história (a que ele conhece), e assim contribui para a proteção da memória da humanidade.
Sim, qualquer escritor é um guardião da memória. Agora, qual o papel do revisor e tradutor nesse processo?
O trabalho do revisor é, falando de forma bem generalizada, eliminar erros e incoerências para deixar o texto mais agradável de ler. Um texto com menos obstáculos linguísticos e narrativos torna-se mais acessível e, consequentemente, a probabilidade de ele ser lido por mais pessoas, é maior. O tradutor, por sua vez, ao traduzir um texto para outras línguas, o torna disponível para pessoas de outros países, e assim amplia também o alcance dele.
Ambos, revisor e tradutor, desempenham então um papel importante na difusão das memórias, e quanto mais pessoas têm conhecimento de uma memória, mais bem guardada e lembrada ela será. Se o escritor protege as memórias ao registrá-las em papel, revisores e tradutores as protegem propiciando a sua propagação.
Porém, ao passo em que escritores, revisores e tradutores são guardiães, também são, propositalmente ou não, censores da memória.
Escritores só conseguem contar as histórias de seu ponto de vista, deixando, obviamente, de fora outras maneiras de pensar e situações que não viveram. Se, por exemplo, pela dinâmica social somente um certo tipo de pessoa tem acesso ao letramento e à escrita, as outras classes e povos são privados de retratar as próprias memórias da sua maneira.

Até o século XX, a escrita era reservada quase que exclusivamente a homens brancos de classe média-alta, assim, as memórias que eles retrataram são inevitavelmente, mesmo que não de maneira intencional, enviesadas.

Mas há também censura proposital em que o escritor, revisor ou tradutor decide omitir ou mudar algo, fato mais evidente na não ficção. Na minha época de escola na Alemanha, os livros didáticos de História, por exemplo, tratavam do curto, mas muito violento passado colonial do país, somente de passagem, não passando ao aluno a verdadeira extensão e gravidade dos crimes. Outro exemplo seria um tradutor que decide (geralmente junto à editora, é claro) não traduzir palavrões ou palavras de cunho racista, o que resulta numa imagem suavizada, portanto, distorcida da época retratada.
Tudo isso, porém, não diminui a importância do registro escrito, graças ao qual temos a possibilidade de refletir sobre nós, seres humanos, e o nosso passado, reconhecer os acertos e os erros e, assim, formar uma base para tomar escolhas mais responsáveis.

Stefanie Herzog

Alemã, Stefanie reside no Brasil desde 2010. É professora de alemão e inglês, e tradutora. Traduz entre os idiomas português, alemão e inglês. Tem experiência em tradução especializada (nas áreas de administração, telecomunicação e marketing) e editorial. É apaixonada por literatura brasileira e alemã, e volta e meia se aventura em criações poéticas próprias. Participa ativamente do clube de leitura da escola e é uma de nossas apoiadoras.

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